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Uma escola antirracista: como colocar em prática

Uma escola antirracista: como colocar em prática

Uma escola antirracista: como colocar em prática

Em 2023, a Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura afro-brasileira nas escolas, completou 20 anos.

Com certeza, a Lei 10.639/2003 foi um importante avanço na luta antirracista no Brasil, ajudando a promover uma educação baseada no respeito e valorização às diferenças, porém, ainda precisamos avançar e muito.

Não podemos cumprir a lei apenas em novembro, no mês em que se comemora o Dia da Consciência Negra, celebrada em 20 de novembro. Como se diz, precisamos ser antirracistas de novembro a novembro, sempre.

Mas, em geral, o que se vê são escolas trabalhando a valorização de nossa herança africana e promovendo a educação antirracista apenas em datas pontuais, sim.

Para a professora de História e mestra em História Social da Cultura pela PUC-RIO, Elaine Monteiro, “as escolas precisam enxergar a educação antirracista como um importante mecanismo para enfrentar o racismo estrutural e a exclusão escolar. A escola é um dos primeiros locais em que crianças negras têm contato com o racismo. Por isso, é, também nesse espaço que a luta antirracista deve acontecer. Não dá mais para enfatizarmos conteúdos que apenas valorizam as conquistas dos colonizadores e nos incutem o olhar eurocêntrico do mundo. Precisamos falar, valorizar, honrar a história, potência e contribuições que os africanos nos trouxeram, e não apenas mostrar o negro no lugar do escravizado, do subalternizado”.

Dara Sant'Anna, bacharel em Direito, militante dos movimentos feminista e antirracista, coordenadora estadual do Movimento Negro Unificado e integrante da Marcha Mundial de Mulheres, frisa, ainda, que para termos uma escola antirracista, de fato, ela precisa ter como norte o debate racial: “Os alunos precisam ter contato com essa discussão, com esse olhar permanente em todos os momentos, ambientes e disciplinas porque, sim, é algo que nos afeta em todas as dimensões. A riqueza, a diversidade, toda a contribuição e potência do povo negro têm que ser faladas nas salas de aula. Reduzir a história do povo negro à escravidão é reforçar estereótipos e colocar o negro no lugar de subalterno e sofredor, quando na verdade somos responsáveis por enormes contribuições na formação desse país. Contribuições na cultura, nas artes, nas técnicas agrícolas e em tudo o mais que se pensar tem a mão, a força e a potência do negro ajudando a construir esse país que se chama Brasil.”

Para além disso, Elaine enfatiza que é preciso, também, que o corpo docente e seus funcionários reflitam, mostrem essa diversidade, essa representatividade: “Você lembra de quantos professores pretos você teve, seja na escola ou na universidade? Um, dois, nenhum? Pois é....é preciso que esse aluno se sinta representado. Num país de maioria negra, por que os negros ainda ocupam poucos espaço de poder, seja na política, na magistratura, na docência ou onde quer que seja? Refletir sobre isso é necessário e nos aponta muitas respostas e muitos caminhos que ainda precisamos percorrer.”

Dara concorda: “Vamos olhar o corpo docente das escolas. Quem são os professores? Esses professores tocam na temática racial? De que maneira ela é abordada: valorizando nossa herança africana ou apenas mostrando a escravidão? Outra coisa: esse corpo estudantil, ele é diverso? A bibliografia que a escola usa, tem autores e autoras negras? Então é isso: uma escola antirracista precisa ter esse olhar constante, esse olhar em toda sua estrutura e no seu dia a dia como algo natural, orgânico. Caso contrário, vai apenas se resumir a discutir a questão racial em novembro, de forma superficial, e não vai mudar em nada.”


As marcas do racismo

O ator Marcelo Dias lembra de sua época escolar como uma época de muito preconceito e sofrimento: “O racismo me atravessou de uma maneira muito cruel. Na época da escola, eu tinha duas professoras loiras, uma de Português e uma de Matemática. A única criança que não podia ir ao banheiro era eu. Eu era na minha turma, na minha sala de aula, eu era o único aluno negro. E era um clima hostil comigo. Por exemplo, essas professoras nunca me chamavam pelo meu nome. Não me chamavam de Marcelo, me chamavam de “neguinho”. E elas diziam que não me deixavam ir ao banheiro porque “eu ia fazer arruaça pela escola”. Olha que crueldade! Todas as crianças podiam ir, menos eu”.

Num outro episódio, ele recorda que sua mãe foi chamada à escola e a professora disse à mãe dele “cuide desse menino porque do jeito que está, ele não vai ser boa coisa”. O que ele tinha feito de “errado”? Tinha feito xixi nas calças, justamente porque as professoras nunca o deixavam ir ao banheiro.

Por sorte, Marcelo teve mãe e pai que sempre viram na educação o caminho para uma vida melhor e, apesar desse clima hostil que Marcelo vivia, eles nunca o deixaram abandonar os estudos. Muito pelo contrário, incentivavam ainda mais e valorizavam a força que ele tinha. Com a voz emocionada, ele falou: “Foi muito ruim. Eu era chamado de neguinho pelos outros alunos, pelos professores, por todo mundo e ninguém fazia nada. Eu não tinha como lutar contra isso tudo, mas eu tive que continuar nessa escola e ainda bem que eu resisti e continuei os estudos, mas só Deus sabe o que eu passei. Mas é isso: a educação nos salva, nos transforma e eu venci. E, não professora, eu não virei coisa ruim, não. Eu venci, viu! Eu virei ator. Eu vivo da profissão que eu amo e tenho muito orgulho disso. E olha que legal: eu hoje, inclusive, atuo numa peça que fala sobre a questão do racismo e da luta para termos, enfim, um país antirracista. Tenho muito orgulho de poder levar aos palcos temas e discussões importantes como a que fazemos na peça “Para meu amigo branco”.


Arte e resistência

Indicada ao prêmio Shell (2023), a peça “Para meu amigo branco” parte do relato de um pai que, em uma reunião escolar, suscita um importante debate sobre racismo: sua filha de oito anos foi chamada de “negra fedorenta” por um colega branco. Para a escola, é um caso de bullying. Para o pai da criança, um episódio claro de racismo. A partir daí, personagens brancos e negros trazem, para dentro da cena, a temática do racismo e como ele está presente no cotidiano da sociedade. O espetáculo é inspirado no livro homônimo do jornalista Manoel Soares e tem direção de Rodrigo França. Na peça, Marcelo interpreta Monsueto, o pai de Zuri, a criança que sofre racismo na escola.

Interessante é que no desenrolar da história, peça mostra que a escola deve parar e enfrentar a questão do racismo que houve. E Marcelo afirma: “É isso que tem que acontecer. A escola tem que parar, tem que envolver todo mundo na discussão. Medidas têm que ser tomadas. Não dá para fingir que nada aconteceu e não dá para tratar como algo pontual e que não vai mais acontecer. A partir disso, ações efetivas têm que ser tomadas. Só assim vamos acabar com isso”.

Dara e Elaine concordam e dizem a mesma coisa: quando acontece um caso de racismo na escola, ela, enquanto instituição, tem o dever de fazer disso um momento de discussão, uma oportunidade de formação para todo o ambiente escolar rever suas posturas, encarar seu racismo e, a partir de então, buscar ter de fato um olhar/uma visão/uma prática antirracista, sempre.

Marcelo afirma: “Acredito que é preciso termos ações concretas contra o ódio em relação às pessoas negras, contra essa opressão, esse racismo estrutural. Precisamos ter mais estudos que mostrem a História e a contribuição dos povos africanos na construção do Brasil. Me lembro bem que na época que eu estudei, aprendi que os bandeirantes eram os verdadeiros desbravadores dessa terra, que descobriram minas de ouro e que faziam todo o bem para o país. E os negros, e os indígenas? Precisamos falar sobre isso.”

Dara salienta esse mesmo aspecto: “O racismo estrutural impacta a autoestima dessas crianças e jovens desde a escola. E é muito triste e absurdo isso. Você perde pessoas que poderiam estar contribuindo mais para a sociedade, se tivessem empoderadas. Por que, até hoje, as salas de aula, quando a gente fala de plantio, quando a gente fala de economia, de engenharia, não falam da nossa herança africana? Tudo vem de África. Não veio de Portugal, sabe? A lógica de plantio, a forma de construção, vem tudo de África. É a incrível contribuição do povo negro que é apagada. Temos que resgatar isso, ensinar, mostrar. Resgatar nossa história e a autonomia das crianças e jovens. É urgente e necessário isso. Da forma que ainda está posto, com o racismo estrutural nos oprimindo, é mais fácil acreditar que as pirâmides eram construídas por alienígenas, é mais fácil pintar uma Cleópatra branca do que acreditar que a mulher que era dita como mais linda do mundo, na Antiguidade, era uma mulher negra, e por aí vai. A sociedade perde como um todo quando não investe e valoriza a diversidade porque é exatamente a diversidade, a pluralidade, o debate de ideias, a troca de diferentes conhecimentos que faz com que a gente evolua.”

Finalizando a discussão, Elaine lembra a célebre frase de Angela Davis: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. E continua: “Quando pensamos e construímos caminhos para a prática da educação antirracista, é necessário lidarmos com desconfortos e encararmos a reorganização de estruturas estabelecidas. Precisamos chamar para a ação todos nós, homens e mulheres, brancos e negros. Todos temos responsabilidade pela mudança coletiva que tanto desejamos, sonhamos e vamos lutar para alcançar.”


Caiu no ENEM

Com o tema “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”, a discussão antirracista foi tema da redação do ENEM 2024, mostrando ainda mais a relevância do ensino de História e de Cultura afro-brasileira nas salas de aula de todos os segmentos.


Programa “Educação Antirracista em Diálogo”

Recentemente, no dia 20 de novembro desse ano, o Ministério da Educação (MEC) lançou, no Canal Educação, o programa “Educação Antirracista em Diálogo”.

Em cada episódio, o programa entrevistará importantes especialistas sobre o tema do antirracismo, claro. O objetivo das conversas é dar suporte à formação de professores, como parte do eixo difusão de saberes da Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola, que visa contribuir para a promoção de uma educação pautada pela equidade e antirracismo.

Os episódios que já foram ao ar ficam disponíveis no YouTube do MEC e do Canal Educação e poderão servir de boa ferramenta para informação e atualização dos professores (e toda comunidade escolar) sobre conteúdos e práticas antirracistas.

Por Dani Maia


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